Carta aberta sobre o “estado de exceção litúrgica”
Carta aberta sobre o “estado de exceção litúrgica”
Aos teólogos e teólogas,
estudiosos e estudiosas,
estudantes de teologia
A grande tradição litúrgica, que sempre acompanhou e apoiou a Igreja em sua história de graça e de pecado, ouve o gemido de pessoas e nações, nesta crise de pandemia, que traz sofrimento e aflição para aqueles que estão doentes, isolamento, solidão e medo para todos os demais. Assim, o ritmo normal da jornada quaresmal e pascal é alterado, subvertido, solidarizando-se ao sofrimento comum. Nós nunca teríamos pensado, no entanto, que um sofrimento pequeno, mas não marginal, neste momento viesse também do exercício da autoridade eclesial e dos Decretos Quo magis e Cum sanctissima, que a Congregação para a Doutrina da Fé publicou em 25 de março de 2020. Não incomoda que esta Congregação dedique sua atenção também à liturgia. Mas especial e singular é o fato que ela modifique os ordines, introduza prefácios e formulários de festas, modifique calendários e critérios de precedência. E que faça isso em um missal de 1962. Como tudo isso é possível?
A Congregação, como é sabido, nesse caso se move no espaço de uma autoridade excepcional, que remonta a 13 anos atrás, aos termos do Motu Proprio Summorum Pontificum. Mas como o tempo é superior ao espaço, o que é possível no plano normativo nem sempre resulta apropriado. Uma reflexão crítica sobre a lógica desse episódio se torna decisiva. O tempo, de fato, nos explica o paradoxo de uma competência sobre a liturgia que foi tirada dos Bispos e da Congregação de culto: isso foi disposto, no Summorum Pontificum, com a intenção de solene pacificação e de generosa reconciliação, mas logo foi transformada em grave divisão, em conflito generalizado, até mesmo em um símbolo de “rejeição litúrgica” do Concílio Vaticano II. A distorção máxima das intenções iniciais pode ser notada hoje naqueles seminários diocesanos, onde se pretende formar futuros ministros contemporaneamente para dois ritos diferentes: o rito conciliar e o que o desmente. Tudo isso atingiu seu ponto mais surreal quando, anteontem, os dois Decretos atingiram o ponto culminante de uma distorção que não pode mais ser tolerada, que pode ser exposta nestes termos sintéticos:
– a Congregação para a Doutrina da Fé posiciona-se como substitutiva das competências atribuídas pelo Concílio Vaticano II aos Bispos e à Congregação para o Culto Divino;
– acredita elaborar “variantes litúrgicas” dos ordines sem ter as competências históricas, textuais, filológicas e pastorais;
– parece negligenciar, precisamente no plano dogmático, o grave conflito que se cria entre lex orandi e lex credendi, uma vez que é inevitável que uma dupla forma ritual conflitante induza uma divisão significativa na expressao da fé;
– parece subestimar o efeito devastador que no plano eclesial essa “reserva” exerce, com o fato de imunizar uma parte da comunidade da “escola de oração” que o Concílio Vaticano II e a Reforma Litúrgica doaram providencialmente ao caminho eclesial comum.
O “estado de exceção“, no entanto, hoje também acontece no plano civil, em sua dura necessidade: mas esse fato nos permite uma visão eclesial de maior prazo. Para retornar à normalidade eclesial, devemos superar o estado de exceção litúrgica estabelecido há 13 anos, em outro mundo, com outras condições e com outras esperanças, pelo Summorum Pontificum.
Não faz mais sentido retirar dos bispos diocesanos a sua competência litúrgica; não faz mais sentido nem uma Comissão Ecclesia Dei (que de fato já foi suprimida), nem uma Seção da Congregação para a Doutrina da Fé, que retirem a autoridade dos Bispos diocesanos ou da Congregação para o Culto; não faz mais sentido que decretos sejam feitos para “reformar” um rito que está encerrado em uma história passada, parada e cristalizada, sem vida e sem força. Para ele não pode haver nenhuma reanimação.
O duplo regime acabou, a nobre intenção da SP acabou, os lefebvrianos aumentaram cada vez mais a aposta e depois fugiram para longe, a insultar o Concílio Vaticano II, o papa atual junto com os seus três predecessores. Alimentar ainda um “estado de exceção litúrgica” – que havia nascido para unir e nada mais faz que dividir – apenas leva a fragmentar, privatizar, distorcer o culto da Igreja.
Com base nessas considerações, propomos compartilhar, entre todos nós, o pedido à Congregação para a Doutrina da Fé para que retire imediatamente os dois Decretos de 25/03/2020 e restitua todas as competências sobre a liturgia aos Bispos diocesanos e à Congregação para o Culto Divino. Sem prejuízo, como sempre, à referida Congregação, da competência em matéria doutrinária. Vamos sair, portanto, do “estado de exceção litúrgica“. Se não agora, quando?
Com os melhores votos a todos os colegas, as colegas e estudantes, pela vida sitiada, mas não expugnada, nestes tempos amargos, mas não avaros.
Do Brasil